Por Helena Silvestre

Ilustração: Amanda Martínez E.

Ir al artículo en español

Quantos povos e deuses têm sido assassinados em nome de uma falsa identidade nacional, produzida e reproduzida na base da violência, do assassinato, do estupro e da mais intensiva extração e expropriação de tudo?

Quantos povos e deuses têm sido assassinados?

A gente assistindo em qualquer tela uma pessoa ser asfixiada até a morte pelo Estado – modelo que o ocidente decidiu ser o melhor para a organização coletiva da vida. É o normal e o normal é uma ruína. Era a isso que queríamos regressar?  O preço da comida, dos aluguéis, os despejos, as epidemias, as chacinas, tudo isso atinge sempre com maior virulência as pessoas negativamente racializadas, empobrecidas, periféricas. É a certas populações que o risco de ser eliminados como povo está posto. É racismo estruturado em todas as crueldades.

Quantos povos e deuses têm sido assassinados em nome do Brasil? – essa abstração. Não existe um só Brasil, não existe um único modo de estar vivendo em cima deste chão imenso. O sistema não é apenas a pretensão de uma forma econômica totalitária, ele é totalitário também por ser um modelo totalitário de gente. E isso também está em crise; não há só um modo de ser Brasileiro, não há só um modo de ser gente, não há apenas uma maneira de estar vivo e interagindo com o meio em algum pedaço dessa terra. 

Quantos povos existem no Vale do Javari? Quantas povos, com maneiras distintas de organizar a vida e experimentar outras formas de ser sociedade? Quantas línguas, deuses, espíritos mágicos e conhecimentos acalentados ao longo dos tempos? Quantos povos não contactados existem ali?  A dizer que não querem se relacionar com o mundo que generalizamos em cima da terra. Não querem participar do que somos, não desejam nada do que temos. Povos que querem unicamente o direito de não se envolverem na sombria maquinaria ocidental.

É que o antissistema mais visceral e utópico existe, está aí, esgueirando-se das incessantes ameaças à sua existência como modo de vida radicalmente diferente do capital. Povos que não compartilham a ideia de posse, onde o idioma não permite falar de si mesmo em desconexão com o que vive além da nossa pele, idiomas onde a palavra líder só existe no plural. Outras lógicas, completas.

É por isso que a disputa por território tem sido o cenário de violências e assassinatos há tanto tempo. Sejam disputas pelo território físico ou pelo controle e influência sobre ele, disputas sobre o modo como a gestão coletiva da vida acontece ali ou seja pelo uso que se dará a uma porção de terra.

A floresta é capaz de converter as pessoas, ela que emana lucidez, é uma vida da qual dependemos e que precisa ser resguardada . Quem se irmana a essa maneira de estar vivo é ganho pelos encantados e Orixás que só existem se a mata estiver de pé, que só existem nas águas doces que brotam, nos mangues. Os povos da floresta se valem de seus próprios corpos e existências como barreira para o avanço genocida da sociedade branca.

A disputa pela terra é, na verdade, uma disputa pela história – a que aconteceu e a que pode se desenrolar: já foi possível viver diferente? É ou não é possível ter relações distintas entre nós e tudo o que nos rodeia? A existência da floresta viabiliza outros mundos, feito fatos, feitos realidade simultânea e radicalmente antagônicos à sanha do capital.

O coração de Bruno pertencia à floresta e ele se amalgamou com ela defendendo-a com a própria vida, sabendo o vínculo inexorável entre as existências. É dilacerante saber de seu assassinato e sentir comunitariamente a dor que arranca de repente o caminho de nós.

Este é um governo de assassinos, é um governo declaradamente inimigo da vida, dos defensores e defensoras da vida, inimigo dos pobres, dos humanos que não são à sua imagem e semelhança, inimigo dos rios, dos animais. Um governo que decreta o assassinato de tudo o que não é espelho, ele confere medalhas a quem mata mais e a quem tortura. Governo que se apóia em radicalizar o genocídio que estruturalmente nos acompanha há séculos, sem mediações, sem tergiversar, sem vacilar.

Precisamos arrancá-lo do poder e iremos conseguir, na bênção dos que se foram, entregando o próprio corpo como escudo 

Precisamos arrancá-lo do poder e iremos conseguir, mas não estará resolvido. Nunca esteve, nem nos séculos de colonização e nem nas poucas décadas de democracia. Precisamos mudar a maneira como vivemos, urgentemente, ao invés de agarrar falsas ilusões de que alguma reforma poderia transformar em bem estar social o que experimentamos apenas como o mal estar na civilização. 

O sistema destrói povos e deuses sempre que prega o progresso e sempre que tece em conjunto com as forças repressoras, golpistas, patriarcais, coloniais, punitivistas e/ou alinhadas com a ordem. A nossa raiva precisa ganhar espaço e forma num movimento coletivo; nossa raiva é uma existência tão legítima quanto potente, não deve ser desmotivada, não é o contrário de amor e a um só tempo nos identifica como oprimidos e nos arranca da condição passiva para o revide. A digna raiva zapatista que também se nutre das raízes conectadas subterrâneamente por toda Abya Yala.

Este é um governo de assassinos e nós precisamos arrancá-lo do poder, e nós iremos conseguir. Tanto mais quanto nos movemos para além dessa ideia de nação – que os poderosos sempre mobilizaram para nos destruir.  É para além do nacional, já que os tiros atingem também o carro onde vai o presidente da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador, a CONAIE. É para além do nacional já que celebramos Fancia Marquez sem tirar os olhos do que acontece no Brasil, onde a justiça condena uma criança em nome de seu fundamentalismo cristão, branco, burguês e cis-hetero-patriarcal. 

Este é um governo de assassinos e nós precisamos arrancá-lo do poder, eu acredito que nós iremos conseguir e a força empenhada em tirá-los do poder deve seguir seu curso depois, comprometida com devolver o poder às múltiplas mãos de onde ele emana. 

É preciso se comprometer com isso.

Em ser radicalmente antiracista, independente de quem estiver na cadeira presidencial. É defender a floresta e os povos da floresta, independente de quem esteja no palácio ou na casa real, é defender a possibilidade de viver fora da ordem da mercadoria, como um direito a pensar diferente, a compreender e experimentar outras maneiras de organização do poder, do tempo, da vida, de tudo.

Mesmo diante do horror, ainda se fazem presentes as forças ancestrais de todos os povos aqui já vencidos por esta maquinaria ocidental mortífera. Mesmo diante do horror, idiomas foram preservados, pedaços de natureza, maneiras de articular relações comunitárias, de fazer saúde, de passar pela vida atentos ao rastro que ela deixa atrás de si.

Este sistema é uma ruína tentando apoderar-se do que ainda não se curvou ao seu pensamento único, ser humano único, estado único, única nação, único idioma, único jeito de ser feliz. 

É por isso que enquanto alguém estiver em risco,nenhum de nós estará a salvo. É por isso que, enquanto a floresta estiver em risco, nenhum de nós estará a salvo.

Nossos corpos urbanos, desterrados, favelados, também estão expostos defendendo comunidades ameaçadas em sua existência coletiva, basta lembrar dos 25 mortos um mês atrás, na Vila Cruzeiro, ou dos 25 um ano atrás, no Jacarezinho, ou dos tantos mortos em qualquer data que apontarmos aleatoriamente, porque nos territórios onde os pobres se amontoam também estamos em guerra. 

Que possamos nos irmanar, nos defender com tanta radicalidade quanto nos atacam. Que possamos recuperar na mesma medida que nos saquearam e saqueiam – é a possibilidade que temos de frear o fim do mundo.

Que seja feita justiça no caso de Bruno e Don, mas que seja justiça completa. Nomeando quem matou e quem mandou matar, a serviço de que interesses. Que seja feita justiça completa porque a terra precisa ser tomada como sujeita de direitos,  ela e o povo que a ela pertence, nutrindo interdependentes florestas e maneiras de articulação comunal mais alinhadas com os ciclos da vida. 

Querem nos fazer acreditar que não há outra maneira de escapar e estamos fadados a reproduzir a resposta branca, mesmo quando crítica. Querem destruir nossa capacidade de contar histórias, de inventar histórias, de viver história, produzindo historia simultaneamente. 

Que seja feita justiça completa, uma que nos aproxime de um governo da terra e dos povos da terra,  de um mundo sem prisões, sem cárceres, sem classes sociais, sem estado, sem propriedade privada, sem opressão. Que nos aproxime de uma governança horizontal que corresponda um pouco melhor à abundância que a Floresta e seus povos, generosamente, nunca nos negaram. 

.
Ilustración: Amanda Martínez E.

Flecha en el aire #1

Por Helena Silvestre

Traducción: Helena Silvestre

¿Cuántos pueblos y dioses han sido asesinados en nombre de una falsa identidad nacional, producida y reproducida a base de la violencia, el asesinato, la violación y la más intensiva extracción y expropiación de todo?

¿Cuántos pueblos y dioses han sido asesinados?

Miramos en cualquier pantalla una persona siendo asfixiada por el Estado – modelo que Occidente decidió ser el mejor para la organización colectiva de la vida. Es normal y lo normal es una ruina. ¿Es esto a lo que queríamos volver? El precio de los alimentos, los alquileres, los desalojos, las epidemias, las masacres, todo esto siempre golpea con mayor virulencia a las personas negativamente racializadas, empobrecidas, periféricas. Es a determinadas poblaciones a las que se les plantea el riesgo de ser eliminados como pueblo. Es racismo estructurado en todas las crueldades.

¿Cuántos pueblos y dioses han sido asesinados en nombre de Brasil? – Esta abstracción. No hay un solo Brasil, no hay una sola forma de vivir encima de este inmenso suelo. El sistema no es sólo la pretensión de una forma económica totalitaria, también es totalitario porque es un modelo totalitario de persona. Y eso también está en crisis; no hay una sola forma de ser brasileño, no hay una sola forma de ser gente, no hay una sola forma de estar vivo e interactuando con el medio ambiente en alguna parte de esta tierra.

¿Cuántos pueblos hay en el Valle de Javari? ¿Cuántos pueblos, con diferentes formas de organizar su vida y experimentando con otras formas de ser sociedad? ¿Cuántos idiomas, dioses, espíritus mágicos y conocimientos atesorados a lo largo del tiempo? ¿Cuántos pueblos no contactados hay? Diciendo que no quieren relacionarse con el mundo que generalizamos en la tierra. No quieren participar de lo que somos, no quieren nada de lo que tenemos. Gente que solo quiere el derecho a no meterse en la terrible maquinaria de occidente.

Es porque el antisistema más visceral y utópico existe, está ahí, desviándose de las incesantes amenazas a su existencia como una forma de vida radicalmente diferente al capital. Pueblos que no comparten la idea de posesión, donde el lenguaje no nos permite hablar de sí mismos en desconexión con lo que vive más allá de nuestra piel, lenguajes donde la palabra líder solo existe en plural. Otras lógicas, completas.

Por eso, la disputa por el territorio ha sido escenario de violencias y asesinatos durante tanto tiempo. Ya sean disputas por el territorio físico o por el control e influencia sobre el mismo, disputas por la forma en que allí se lleva a cabo la gestión colectiva de la vida o por el uso que se le dará a una porción de tierra.

El bosque es capaz de convertir a las personas, emana lucidez, es una vida de la que dependemos y que hay que proteger. Quien se adhiere a esta forma de estar vivo es conquistado por los Encantados y los Orixás que sólo existen si la selva está en pie, que sólo existen en las aguas dulces que brotan, en los manglares. Los pueblos del bosque usan sus propios cuerpos y existencias como una barrera al avance genocida de la sociedad blanca.

La disputa por la tierra es, de hecho, una disputa por la historia, la que sucedió y la que podría desarrollarse: ¿fue alguna vez posible vivir de otra manera? ¿Es o no posible tener relaciones distintas entre nosotros y todo lo que nos rodea? La existencia del bosque posibilita otros mundos, hechos realidad simultánea y radicalmente antagónica a la furia del capital.

El corazón de Bruno pertenecía al bosque y se fusionó con él, defendiéndolo con su vida, conociendo el vínculo inexorable entre las existencias. Es desgarrador saber de su asesinato y sentir comunitariamente el dolor que nos quita de repente el camino a nosotres.

Este es un gobierno de asesinos, es un gobierno declaradamente enemigo de la vida, de defensores de la vida, enemigo de los pobres, de los humanos que no son su imagen y semejanza, enemigo de los ríos, de los animales. Un gobierno que decreta el asesinato de todo lo que no sea un espejo, que regala medallas a los que más matan y a los que torturan. Un gobierno que se basa en radicalizar el genocidio que estructuralmente nos acompaña desde hace siglos, sin mediaciones, sin sutilezas, sin titubeos.

Necesitamos arrebatarle el poder y lo conseguiremos, con la bendición de los que se han ido, dando su propio cuerpo como escudo.

Necesitamos sacarlo del poder y lo lograremos, pero eso no será suficiente. Nunca lo fue, ni en los siglos de colonización ni en las pocas décadas de democracia. Necesitamos urgentemente cambiar la forma en que vivimos, en lugar de aferrarnos a falsas ilusiones de que alguna reforma podría transformar lo que experimentamos sólo como un malestar de la civilización en bienestar social.

El sistema destruye pueblos y dioses cada vez que predica el progreso y cada vez que se entreteje con fuerzas represivas, golpistas, patriarcales, coloniales, punitivas y/o alineadas a la orden. Nuestra ira necesita ganar espacio y forma en un movimiento colectivo; nuestra ira es una existencia tan legítima como potente, no debe ser desmotivada, no es lo contrario del amor y al mismo tiempo nos identifica como oprimidos y nos saca de la condición pasiva para tomar represalias. La digna rabia zapatista que también se alimenta de raíces conectadas bajo tierra en todo el Abya Yala.

Este es un gobierno de asesinos y necesitamos sacarlo del poder, y lo haremos. Más aún cuando superemos esta idea de nación, que los poderosos siempre han movilizado para destruirnos. Va más allá de lo nacional, pues los disparos también alcanzaron el auto donde viajaba el presidente de la Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador, CONAIE. Está más allá de la dimensión nacional mientras celebramos a Fancia Márquez sin quitar la vista de lo que sucede en Brasil, donde la justicia condena a una niña en nombre de su fundamentalismo cristiano, blanco, burgués y cis-hetero-patriarcal.

Este es un gobierno de sicarios y hay que arrancarlo del poder, creo que lo lograremos y la fuerza comprometida en sacarlos del poder debe seguir su curso después, comprometida en devolver el poder a las múltiples manos de las que emana.

Tienes que comprometerte con ello.

En ser radicalmente antirracista, independientemente de quién ocupe la silla presidencial. Es defender la selva y los pueblos de la selva, sin importar quién esté en el palacio o en la casa real, es defender la posibilidad de vivir fuera del orden mercantil, como un derecho a pensar diferente, a comprender y experimentar otras formas de organizar el poder, el tiempo, la vida, todo.

Incluso frente al horror, las fuerzas ancestrales de todos los pueblos aquí ya vencidos por esta mortífera maquinaria occidental siguen presentes. Aún frente al horror se conservaron lenguajes, pedazos de naturaleza, formas de articular relaciones comunitarias, de hacer salud, de ir por la vida atentos al rastro que deja.

Este sistema es una ruina tratando de apoderarse de lo que aún no se ha doblegado a su único pensamiento, único ser humano, único estado, única nación, única lengua, único camino para ser feliz.

Es por eso que mientras alguien esté en riesgo, ninguno de nosotros estará a salvo. Por eso, mientras el bosque esté en peligro, ninguno de nosotros estará a salvo.

Nuestros cuerpos urbanos, exiliados, habitantes de favelas, también están expuestos defendiendo comunidades amenazadas en su existencia colectiva, basta recordar los 25 muertos hace un mes, en Vila Cruzeiro, o los 25 hace un año, en Jacarezinho, o los muchos muertos en cualquier fecha que señalemos al azar, porque en los territorios donde se hacinan los pobres también estamos en guerra. 

Que nos unamos, que nos defendamos tan radicalmente como nos atacan. Que podamos recuperarnos en la misma medida en que fuimos saqueados y saqueadas – es la posibilidad que tenemos para detener el fin del mundo.

Que se haga justicia en el caso de Bruno y Don, pero que sea justicia plena. Nombrar quién mató y quién los mandó a matar, al servicio de qué intereses. Que se haga plena justicia porque es necesario tomar como sujeto de derechos la tierra, ella y las personas que le pertenecen, nutriendo bosques interdependientes y formas de articulación comunal más alineadas con los ciclos de la vida.

Quieren que creamos que no hay otra salida y que estamos condenados a reproducir la respuesta blanca, aunque sea crítica. Quieren destruir nuestra capacidad de contar historias, de inventar historias, de vivir la historia, de producir historia simultáneamente.

Que se haga una justicia completa, que nos acerque a un gobierno de la tierra y a sus pueblos, a un mundo sin prisiones, sin cárceles, sin clases sociales, sin estado, sin propiedad privada, sin opresión. Que nos acerque a una gobernanza horizontal que corresponda un poco más a la abundancia que generosamente la Selva y sus pueblos nunca nos han negado.

Deja una respuesta

Tu dirección de correo electrónico no será publicada. Los campos obligatorios están marcados con *

Este sitio usa Akismet para reducir el spam. Aprende cómo se procesan los datos de tus comentarios.