
As eleições brasileiras, que geraram e seguirão gerando debates e apreensão nacional e internacional, finalmente terminaram e Bolsonaro está eleito: a democracia burguesa está com parte grande de suas fraturas expostas.
A democracia que chegamos a conhecer é uma que acolhe privilégios, que vive à base de acordos comprados à luz do dia ou no fundo de estacionamentos, com dinheiro de quem nem tem casa, que acolhe o assassinato sistemático do povo indígena e a eleição de assassinos para legislar, acolhe a mega centralização da comunicação nacional nas mãos de doze famílias burguesas (agora compartilhada com megacorporações internacionais nas redes sociais), que convive com o genocídio da população negra e que é incapaz de ao menos desmilitarizar as polícias, que aceita o feminicídio e violência permanente às mulheres que, em meio à tudo, ainda sustentam nas costas o equilíbrio entre a resistência e a sobrevivência em territórios e corpos aviltados há quinhentos anos pelas chagas do capital. Essa é a democracia que, em seu exagero, leva à presidência alguém que não defende nem a hipocrisia sob a qual se sustenta o discurso democrático burguês assim como o discurso colonizador.
Foi com ela que convivemos; nesta mesa nos sentamos durante anos porque a chegada de energia elétrica à comunidades distantes, o acesso ao ensino superior privado e a redução de IPI para a compra de carros nos deixava uma margem de conforto para a consciência imóvel e resignada de quem acessou algum pífio privilégio e já não queria mais olhar desde os olhos de quem não acessou, porque tal feito pressupõe – se houver coerência – abrir mão de usufruir, em paz, este tão almejado momento de melhora.
Cada vez mais pessoas não compreendem a diferença entre autoritarismos e democracia, e isso diz muito sobre a nossa experiência democrática.
Democracias em países colonizados têm sido sempre um tanto autoritárias e também porque com o capitalismo em crise, o estado amplia seu caráter repressivo e reduz ainda mais seu espectro político (embora siga sendo, desde estas terras, motor importante da acumulação, garantindo a expropriação permanente de tudo para uma apropriação privada, cada vez mais concentrada de tudo).
Parece um quadro coerente com a desilusão que entrega a Bolsonaro votos de explorados e oprimidos e faz pensar no descrédito da democracia que levou a quase um terço dos brasileiros habilitados a votarem a não participar da escolha.
O percentual de votos nulos no segundo turno destas eleições de 2018 chegou a 7,4%, o maior registrado desde 1989, totalizando 8,6 milhões. Os votos brancos somaram 2,4 milhões e, ao todo, 31,3 milhões de eleitores não compareceram às urnas. Somando os votos nulos e brancos com as abstenções, houve um contingente de 42,1 milhões de eleitores que não escolheram nenhum candidato, cerca de um terço do total. 1)Os dados e o gráfico tem como Fonte o TSE/ *Não houve segundo turno em 1994 e 1998
Enxergar a democracia capitalista, desde os olhos mais explorados e oprimidos por ela, imprime ao nosso modo de viver e nos mover no mundo um caráter de urgência originado da leitura de que o estado de exceção tornou-se, há tempos, nosso estado de normalidade.
A obsessão por reproduzir a restrita experiência ocidental de Estado de Direitos foi desativando em nossos corpos a certeza de que, sob o capital, uma real democracia nunca será possível a todes, nos tornando incapazes de compreender o ódio que se expressou de maneira tão evidente e regressiva neste processo eleitoral.
Não se pode perder de vista que o ocidente se constitui também a partir daqui. Porque seguimos financiando com nosso trabalho seus bancos e catedrais. Porque foi aqui, na América, onde eles construíram seu império e ainda pagamos por isso, enclausurados na civilização das armas, dos carros, do rivotril, das igrejas e formas de subordinação, impostas a todos e depois permanentemente repostas e sustentadas, com especial responsabilidade de uma elite local lacaia.
Sim, o ódio é um sentimento que emergiu com força nos processos de luta e enfrentamento que vivenciamos no último período, dos black blocs2)uma tática de defesa/enfrentamento utilizada por manifestantes em várias partes do mundo e que chegou com mais força ao Brasil em 2013 https://www.google.com.br/amp/s/brasil.elpais.com/brasil/2016/09/12/opinion/1473693538_681813.amp.html ao impeachment3)O processo legal que impediu a presidenta Dilma Roussef de seguir governando em 2015, dos rolezinhos4)Mobilizações de jovens de periferia que marcavam encontros por internet em shopping centers e foram duramente reprimidos pela polícia e pelas associações comerciais https://www.google.com.br/amp/s/m.brasilescola.uol.com.br//amp/historiab/rolezinhos-discriminacao-social.htm à greve dos garis, no amplo movimento de rechaço da Copa do Mundo – no país considerado do futebol – nas greves metroviárias, nas conflituosas greves de Suape, Jirau e Belo Monte ou na heróica resistência dos Guaranis, dos Gamelas, dos Seringueiros, dos Povos da Floresta, dos Tupinambás e tantas nações indígenas, impresso na sobrevivência sob a mira do preconceito e ameaça daqueles e daquelas que vinculam sua fé às religiões de matriz africana. Rechaçar o ódio como feio não o desmobilizará e nem colabora com a transformação dessa força violenta e destruidora em algo que seja renovador.
Mais ataques serão desferidos aos trabalhadores e trabalhadoras pobres, o capital já anuncia a que objetivos pode servir o militar na presidência: aprofundarão as desgraças já vislumbradas no primeiro projeto de reforma de previdência (rechaçado por mais que 70% da população) e ampliarão o saque de recursos públicos através da limitação de gastos pelos próximos trinta anos.
Estas medidas irão depredar ainda mais muitas vidas e comunidades inteiras e irão entrar em choque com o povo brasileiro, já encharcado de ódio.
Nem a esperança (usada tantas vezes de maneira oportunista) e nem o medo (mobilizado por esquerdas e direitas) pode responder ao ódio que se postou no meio da guerra polarizada entre o capital e a vida nesse momento de crise que vem se arrastando e há alguns anos corrói e aprofunda a precarização de nossas condições de sobrevivência.
A única possibilidade – diante do avanço das idéias fascistas que se popularizam apoiadas no sentimento de revolta e ausência de instrumentos para rebelar-se – é convocar deste ódio o caráter destrutivo informado por Benjamin 5)Walter Benjamin foi um ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu alemão. Associado à Escola de Frankfurt, ao marxismo e à Teoria Crítica, transmutado em organização ativa da destruição daquilo que já não nos responde mas que segue a bloquear o surgimento de respostas novas.
A forma como as esquerdas institucionais tem se colocado em corpo e ação no presente a pleitear o futuro não deixam de ser travas, são respostas estáticas à perguntas que a realidade vem transformando.
Uma perspectiva de democracia que não se postula ir mais além do estado democrático de direitos não pode levar-nos, na atual fase do capitalismo, a outra coisa que não seja fortalecer o caráter autoritário e controlador do estado burguês.
A luta em defesa de direitos assume a face imediata da batalha campal que está anunciada, é preciso organizar greves, ocupações, manifestações e protestos contra todos os ataques que estão a esperar a cerimônia de posse do déspota eleito. É preciso porque todas as medidas de ajuste ditadas desde o FMI representam, na prática, a expansão do genocídio do povo pobre, preto e trabalhador, já que atenta contra a possibilidade de sobrevivência de nossa gente, sistematicamente atingida pelas balas, pela fome, pela ignorância e alienação.
Essa luta, no entanto, bebendo da mais potente radicalidade presente na elaboração do movimento operário, é incompleta e precisa estar apoiada em valiosas lições que podemos coletar na complexidade da vida e nas nossas próprias contradições e erros ao longo de anos.
O movimento de mulheres, com todas as suas contradições, nos informa a necessidade de expandir a concepção de disputa política e organização.
Também foi a insuportabilidade das violências aquilo que nos fez explodir à luz todo o ódio e revolta caladas e silenciadas no abismo da invisibilidade a que fomos lançadas pelo capital. O movimento feminista soube acolher o ódio, ouvir o ódio e disputá-lo como força de renovação que aponta para a destruição do patriarcado, transmutando em afetividades novas e criativas o que emerge como lava quente.
Todas as esferas, da produção e reprodução do capital, são momentos da acumulação capitalista e, portanto, frontes possíveis e trincheiras a construir. Nenhuma forma organizativa que não acolha a parte que sustenta a vida e que foi denominada como de âmbito doméstico, que não acolha o cuidado e o autocuidado, a defesa e a autodefesa, a rebeldia alimentada de corpos e territórios que não se deixam encaixotar definitivamente, pode ser bem sucedida.
A crítica ao capital-patriarcado-estatista-colonizador é tão profunda quanto à autocrítica à como temos nos organizado e o caráter destrutivo, segundo Benjamin, só conhece um lema: criar espaço; só uma atividade: despejar. Sua necessidade de ar fresco e espaço livre é mais forte que todo ódio.6)BENJAMIN, Walter. Imagens do Pensamento. In.: Obras escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1995. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho; José Carlos Martins Barbosa. pp. 235-237. O questionamento e bloqueio à permanente apropriação patriarcal privada do esforço político gerado coletivamente por nós, mulheres ativistas, nos leva por outros caminhos
a questionar as esquerdas institucionais desenvolvimentistas e seus líderes burocrático-progressistas, se somos consequentes.
Por outro lado, o poder que temos experimentado, trazendo à luz como formas de resistência as atividades com que sustentamos nossos territórios, tem sido surpreendente. Nossos filhos estão em nossas marchas e também está a nossa decisão de não tê-los; marchas que lutam para que sejamos nós a decidir. O movimento feminista, lutando pelo direito ao aborto ao redor de panelas, cozinhando em praça pública enquanto amamentam, contorce a lógica do discurso conservador, porque a radicalidade contra a heteronormatização patriarcal e suas consequências pode assumir uma forma estruturalmente anticapitalista.
Exemplos disso são evidentes na revolução Kurda, na organização das mulheres indianas, na resistência afro-indígena, na luta que cresce na Argentina e que cria raízes nas favelas do Brasil.
Mas conhecendo a história daquilo que chamamos movimento feminista, sabemos que há nele também equívocos e incompletudes. O termo colonizador não foi introduzido sem motivo nessa análise, já que ele nos informa algo essencial sobre a destruição que necessariamente atravessamos para a emergência de novos horizontes e possibilidades abertas. Ele nos informa sobre o processo histórico que constituiu a nossa experiência com o capital na enorme maioria dos lugares da terra, um processo onde se situa o nascimento da ideia de uma raça superior, de uma experiência neutra, universal, englobante, enfim superior, a experiência do racismo que marca todos os povos não brancos e que nunca foram minoria – processo recorrentemente secundarizado pelo próprio movimento de mulheres.
Daí desprende-se que qualquer forma ou aposta englobante, universalizadora, abstratamente equivalente a toda experiência de vida significa sempre a reposição de estruturas de poder opressoras e predatórias à vida. O movimento negro, o movimento indígena e todas os variados arranjos que guardam rastros de concepções de mundo que remontam a um afro-indigenismo anterior à experiência universalizante nos oferecem apoio, sistematizações, perspectivas, nas quais também precisamos nos apoiar para pensar a existência do poder sem a necessária proposição de um estado ou de uma nação. Possibilidades do poder sem privilégio, sem centralização, sem representação e organizado em alinhamento mutável com as necessidades da vida em cada configuração.
Apoiar-se em tais concepções conecta-se, por outro lado, com a incorporação da defesa da natureza e seus arranjos próprios como uma luta que rechaça a idéia de que haja um lado bom na perspectiva de desenvolvimento e do progresso.
É possível compreender a limitação de Marx, ao localizarmos seu olhar no tempo e no espaço, sem abrir mão de toda a sua elaboração, para mim absolutamente necessária. Mas não se pode, por outro lado, abandonar a urgência de criticá-lo onde a temporalidade nos leva de volta à prisão do tempo linear que transforma em passado (subdesenvolvido, atrasado, primitivo, subalterno, desprovido de lógica e carente de iluminação) toda forma que antagoniza com o universalizante ocidental.
Daí que todos os territórios, e não só a fábrica, são frontes possíveis e trincheiras a construir.
Que forma organizativa se pode construir quando o espetáculo colapsa? Como intervir rompendo com a política como espaço cênico e reinventando a experiência no corpo em ação nas lutas? Como propôr sem buscar englobar, subalternizar, oprimir ou explorar? Como arranjar a complexidade das experiências das quais podemos beber e nas quais podemos nos apoiar, num desenho sincrônico que funciona sem definir e ainda assim edificando tudo a cada destruição?
Parece-me, ao final, que as lutas por fazer na situação em que está enredado o Brasil, precisam reconstruir o sentido de revolução à partir da experiência combinada de todas essas formas de luta, agentes e informações históricas, presentes na narrativa ou no corpo. Nenhum pacto de conciliação apaziguadora contém o ódio; é o caráter destrutivo que precisa ser estratégica e cuidadosamente convocado porque ele “ não vê nada de duradouro [nem a desgraça]. Mas por isso mesmo vê caminhos por toda a parte, mesmo quando outros esbarram com muros e montanhas. Como, porém, vê por toda a parte um caminho, tem de estar sempre a remover coisas do caminho”.
Abrir caminho significa agora abrir-se a profunda e real autocrítica em relação aos erros acumulados na linhagem qualquer a que nos associemos. O que não significa, de nenhuma forma, deixar de beber das águas ricas que cada qual pode nos oferecer. Entender o que está ocorrendo e pôr corpo na realidade nos impõe re-habilitarmos antigas tecnologias nossas.
Eu conheço pessoas pobres que votaram em Bolsonaro (não muitas, mas conheço) e conheço pessoas pobres que votaram em Haddad, como também conheço muitas pessoas pobres que não votaram em ninguém. Entre todos estes há trabalhadores que votariam em Lula, há favelados cansados de tanta violência, sofrendo há tempos como bestas de carga enlatadas nos transportes entre um salário miserável e uma insalubre casa de aluguel.
É preciso repôr o corpo na política; são nossos corpos que estão sendo estendidos pelas calçadas de favelas e periferias há muito mais que cem anos. Mas também são eles que podem nos informar sobre as pessoas que votaram no horror por não conseguirem ver nada além das eleições como possibilidade de expressar seu ódio e não porque são burras.
Isso em nada quer dizer que o fascismo e as ideias conservadoras não precisam urgentemente ser combatidas. Ao contrário. Foi exatamente o fato das esquerdas institucionais terem deixado de combatê-las, associando-se a elas, que nos trouxe até este lugar.
O povo não é fascista, o povo não é revolucionário, o povo não é burro e nem é herói; somos o cruzamento de todas as contradiçõe e mazelas desta sociedade em colapso e possuímos cada vez menos ferramentas para nos rebelarmos, posto que até as organizações que criamos ao longo de anos tornarem-se parte da ordem.
Eu, que também estudei nas piores escolas públicas, das favelas mais afastadas durante os violentos anos da década de 90, pude acolher meu ódio – ativando-o como força criativa – porque acessei os restos de uma partilha que o ativismo não institucional ainda fazia. Me conectei com ferramentas e com nossa história. Reproduzir a caricatura eleitoral que bloqueia a autocrítica nos afasta da contradição. É uma a classe sobre quem recai o peso do colapso das sucessivas crises do capital e ela possui uma maneira de ser, neste tempo e neste lugar, com tudo o que isso significa em colonização, raça, gênero e tantas diferenças, em carne e osso.
A polarização gerada pela crise econômica e sua “agenda de recuperação” do capital vai produzir mais ódio. É preciso convocar seu caráter destrutivo, estratégica e cuidadosamente, imbuídos de uma autocrítica radical a como temos nos colocado em ação aqueles e aquelas que pensam a vida para além do capital.
EL CARÁCTER DESTRUCTIVO (NOTAS FEMINISTAS DESDE BRASIL SOBRE UN NUEVO PRESIDENTE
Las elecciones brasileñas, que generaron y seguirán generando debates y dudas a nivel nacional e internacional, fueron celebradas y Bolsonaro fue elegido: las fracturas de la democracia burguesa han quedado en gran parte expuestas.
La democracia que hemos llegado a conocer es la que acoge privilegios, que vive a base de acuerdos comprados a la luz del día o en los fondos de aparcamientos, con dinero de quien no tiene casa, que acoge el asesinato sistemático del pueblo indígena y la elección de asesinos para que legislen, acoge la megacentralización de los medios de comunicación nacionales en manos de doce familias burguesas (ahora compartida con megacorporaciones internacionales en las redes sociales), que convive con el genocidio de la población negra y que es incapaz siquiera de desmilitarizar las fuerzas de seguridad, que acepta el feminicidio y violencia permanente contra las mujeres que, en medio de todo, todavía llevan sobre sus espaldas el equilibrio entre la resistencia y la supervivencia en territorios y cuerpos degradados desde hace quinientos años por las heridas de la capital. Esa es la democracia que, en su expresión más exagerada, lleva a la presidencia a alguien que no defiende ni la hipocresía sobre la cual se sustenta el discurso democrático burgués ni el discurso colonizador.
Con ella convivimos; en esta mesa nos sentamos durante años porque la llegada de la energía eléctrica a comunidades lejanas, el acceso a la enseñanza superior privada y la reducción del IPI para la compra de vehículos nos dejaba un margen de confort para la consciencia inmóvil y resignada de quien accedió a algún pequeño privilegio y ya no quiso mirar desde los ojos de quien no accedía, porque tal hecho supone (si hubiera coherencia) renunciar a disfrutar en paz de tan ansiado momento de mejora.
Cada vez más personas no entienden la diferencia entre autoritarismos y democracia, y esto dice mucho sobre nuestra experiencia democrática. Democracias en países colonizados siempre han sido un tanto autoritarias y también porque, con el capitalismo en crisis, el estado amplia su carácter represivo y reduce todavía más su espectro político (aunque siga siendo, desde estas tierras, motor importante de acumulación, garantizando la expropiación permanente de todo, una apropiación privada cada vez más concentrada).
Parece un cuadro coherente con la desilusión la entrega a Bolsonaro de votos de explotados y oprimidos y hace pensar en el descrédito de la democracia que llevó a casi un tercio de los brasileños habilitados para votar a no participar en las elecciones. El porcentual de votos nulos en la segunda vuelta de estas elecciones de 2018 llegó al 7,4 %, el mayor registrado desde 1989, con un total de 8,6 millones de sufragios. Los votos en blanco sumaron 2,4 millones y, en total, 31,3 millones no comparecieron en las urnas. Sumando los votos nulos y en blanco más las abstenciones, hubo un total de 42,1 millones de electores que no escogieron ningún candidato, cerca de un tercio del total.
Percibir la democracia capitalista desde los ojos más explotados y oprimidos por ella, imprime a nuestro modo de vivir y movernos por el mundo un carácter de urgencia, dando lugar a que se entienda que el estado de excepción de volvió hace tiempo en nuestro estado de normalidad.
La obsesión por reproducir la limitada experiencia occidental de Estados de Derecho fue desactivando en nuestros cuerpos la certeza de que, sobre el capital, una real democracia nunca será posible para todes, volviéndonos incapaces de comprender el odio que se expresó de manera tan evidente y regresiva en este proceso electoral.
No se puede perder de vista que Occidente se constituye también a partir de aquí. Porque seguimos financiando con nuestro trabajo sus bancos y catedrales. Porque fue aquí, en América, donde ellos construyeron su imperio y todavía pagamos por eso, encerrados en la civilización de las armas, de los coches, del rivotril, de las iglesias y sus formas de subordinación, impuestas a todos y después permanentemente repuestas y sustentadas, con especial responsabilidad de una élite local laica.
Sí, el odio es un sentimiento que emergió con fuerza en los procesos de lucha y de enfrentamiento que vivimos en el último período, de los black blocs7)uma tática de defesa/enfrentamento utilizada por manifestantes em várias partes do mundo e que chegou com mais força ao Brasil em 2013 https://www.google.com.br/amp/s/brasil.elpais.com/brasil/2016/09/12/opinion/1473693538_681813.amp.html al impeachment8)O processo legal que impediu a presidenta Dilma Roussef de seguir governando em 2015, de los rolezinhos9)Mobilizações de jovens de periferia que marcavam encontros por internet em shopping centers e foram duramente reprimidos pela polícia e pelas associações comerciais https://www.google.com.br/amp/s/m.brasilescola.uol.com.br//amp/historiab/rolezinhos-discriminacao-social.htm a la huelga de los barrenderos, en el amplio movimiento de rechazo a la Copa del Mundo (en el que consideran el país del fútbol), en las huelgas del metro, las conflictivas huelgas del Suape, Jirau e Belo Monte o en la heróica resistencia de los Guaranis, de los Gamelas, de los Seringueiras, de los Povos da Floresta (los pueblos de la selva), de los Tupinambás y tantas naciones indígenas, rolezinhos de aquellos y aquellas que vinculan su fe a las religiones de matriz africana. Rechazar el odio no lo desmovilizará y no colabora con la transformación de esta fuerza violenta y destructora en algo que sea renovador.
Más ataques serán propinados a los trabajadores y trabajadoras pobres, el capital ya anuncia a qué objetivos puede servir lo militar en la presidencia, como la profundización de las desgracias ya vislumbradas en el primer proyecto de reforma de pensiones (rechazado por más del 70% de la población); y se incrementará el recorte de recursos públicos a través de la limitación de gasto durante los próximos treinta años.
Estas medidas va a depredar todavía muchas más vidas y comunidades enteras y van a chocar con el pueblo brasileño, ya encharcado de odio.
Ni la esperanza (usada tantas veces de manera oportunista) ni tampoco el miedo (movilizado por izquierdas y derechas) puede responder al odio que se colocó en medio de la guerra polarizada entre el capital y la vida en este momento de crisis que se viene arrastrando y hace algunos años corroe y profundiza la precarización de nuestras condiciones de supervivencia.
La única posibilidad (delante del avance de las ideas fascistas que se popularizan apoyadas en el sentimiento de revuelta en ausencia de instrumentos para rebelarse) es apelar de este odio el carácter destructivo comentado por Benjamin 10)Walter Benjamin foi um ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu alemão. Associado à Escola de Frankfurt, ao marxismo e à Teoria Crítica, transmutado en organización activa de la destrucción de aquello que ya no nos da respuesta y que sigue bloqueando el surgimiento de nuevas respuestas.
La manera en que las izquierdas institucionales se han colocado actualmente en cuerpo y acción para pelear por el futuro no deja de ser una traba. Son respuestas estáticas a preguntas que la realidad ya está transformando.
Una perspectiva de democracia que no pretende ir más allá del estado democrático de derechos no nos puede llevar, en la actual fase del capitalismo, a otra cosa que nos sea fortalecer el carácter autoritario y controlador del estado burgués.
Una lucha en defensa de los derechos asume la evidencia de que la batalla campal está anunciada. Es preciso organizar huelgas, ocupaciones, manifestaciones y protestas contra todos los ataques que nos esperan tras la ceremonia de posesión del déspota electo. Es preciso porque todas las medidas de ajuste dictadas desde el FMI representan, en la práctica, la expansión del genocidio del pueblo pobre, negro y trabajador ya que atenta contra la posibilidad de supervivencia de nuestra gente, sistemáticamente teñida por las balas, por el hambre, por la ignorancia y la alienación.
Esa lucha, no obstante, bebiendo de las más potente radicalidad presente en la elaboración del movimiento obrero, es incompleta y precisa estar apoyada en valiosas lecciones que podemos aprender de la complejidad de la vida y de nuestras propias contradicciones y errores a lo largo de los años.
El movimiento de mujeres, con todas sus contradicciones, nos informa de la necesidad de expandir la concepción de disputa política y organización.
También fue lo insoportable de la violencia lo que nos hizo sacar a la luz todo el odio y furia calladas y silenciadas en el abismo de la invisibilidad a la que nos vimos sometidas por el capital. El movimiento feminista supo acoger el odio, escuchar el odio y enfrentarlo como fuerza de renovación que apunta a la destrucción del patriarcado, transmutando en afectividades nuevas y creativas, que emergen como lava caliente.
Todas las esferas, de la producción y reproducción del capital, son momentos de la acumulación capitalista y, por tanto, frentes posibles y trincheras a construir. Ninguna forma organizativa que no acoja la parte que sustenta la vida y que fue denominada como de “ámbito doméstico”, que no acoja el cuidado y el autocuidado, la defensa y la autodefensa, la rebeldía alimentada de cuerpos y territorios que no se dejan arrinconar, puede tener éxito.
La crítica al capital-patriarcado-estatista-colonizador es tan profunda como la autocrítica sobre cómo nos hemos organizado y el carácter destructivo según Benjamin, solo conoce un lema: crear espacio; solo una actividad: despejar. Su necesidad de aire fresco y espacio libre es más fuerte que todo el odio. El cuestionamiento y bloqueo de la permanente apropiación patriarcal privada del esfuerzo político generado colectivamente por nosotras, mujeres activistas, nos lleva por otros caminos a cuestionar las izquierdas institucionales y desarrollistas y sus líderes burocráticos y progresistas, si somos consecuentes.
Por otro lado, el poder que hemos experimentado, trayendo a la luz como formas de resistencia las actividades con las que soportamos nuestros territorios, han sido sorprendentes. Nuestro hijos están en nuestras marchas y también está nuestra decisión de no tenerlos; marchas que luchan para que seamos nosotras las que decidamos. El movimiento feminista, luchando por el derecho al aborto, entre fogones, cocinando en plaza pública mientras amamantan, retuerce la lógica del discurso conservador, porque la radicalidad contra la heteronormatización patriarcal y sus consecuencias puede asumir una forma estructuralmente anticapitalista.
Ejemplos de eso son evidentes en la revolución Kurda, en la organización de mujeres indianas en la resistencia afro-indígena, en la lucha que crece en Argentina y crea raíces en las favelas de Brasil.
Pero conociendo la historia de aquello que llamamos movimiento feminista, sabemos que hay en él también equívocos y elementos inconclusos. El término “colonizador” no fue introducido sin motivo alguno en este análisis, ya que él da cuenta de algo esencial sobre la destrucción que necesariamente tenemos que vivir para que emerjan nuevos horizontes y posibilidades abiertas. Éste nos informa sobre el proceso histórico que constituyó nuestra experiencia con el capital en la mayoría de los lugares de la Tierra, un proceso donde se sitúa el nacimiento de la idea de una raza superior, de una experiencia neutra, universal, englobante, en definitiva, superior; la experiencia del racismo que marca a todos los pueblos no blancos que nunca fueron minoría (de manera recurrente llevado a un segundo plano por el propio movimiento de mujeres).
De ahí se desprende que cualquier forma o apuesta englobadora, universalizadora, abstractamente equivalente a toda la experiencia de vida significa siempre la reposición de estructuras de poder y depredadoras de la vida. El movimiento negro, el movimiento indígena y todas las variadas organizaciones que tienen rastros de concepciones del mundo que remontan a un afro-indigenismo anterior a la experiencia globalizadora nos ofrecen apoyo, sistemas, perspectivas, en las que también necesitamos apoyarnos para pensar la existencia del poder sin la necesaria propuesta de un estado o de una nación. Posibilidades del poder sin privilegios, sin centralización, sin representación y organizado en alineaciones cambiantes con las necesidades de la vida en cada configuración.
Apoyarse en tales concepciones se conecta, por otro lado, con una incorporación de la defensa de la naturaleza y sus organizaciones propias como una lucha que rechaza la idea de que haya un lado bueno en la perspectiva del desarrollo y el progreso.
Es posible comprender la limitación de Marx, al localizar su mirada en el tiempo y en el espacio, sin prescindir de toda su elaboración, para mí absolutamente necesaria. Pero no se puede, por otro lado, abandonar la urgencia de criticarlo donde la temporalidad nos lleva de vuelta a la cárcel del tiempo lineal que transforma en pasado (subdesarrollado, atrasado, primitivo, subalterno, desprovisto de toda lógica y carente de iluminación) toda forma que antagoniza con el universalizante occidental.
De ahí que todos los territorios y no sólo la fábrica, son frentes posibles y trincheras a construir. ¿Qué forma organizativa se puede construir cuando el espectáculo colapsa? ¿Cómo intervenir sin romper con la política como espacio escénico, reinventando la experiencia en el cuerpo de acción en las luchas? ¿Cómo proponer sin buscar englobar, subalternar, oprimir o explorar? ¿Cómo asumir la complejidad de las experiencias de las cuales podemos beber y en las cuales nos podemos apoyar, en un diseño sincronizado que funciona sin estar definido y aún así que edifica todo a cada destrucción?
Me parece, finalmente, que las luchas por hacer en la situación en la que está metido Brasil, necesitan reconstruir el sentido de revolución a partir de la experiencia combinada de todas esas formas de lucha, agentes e informaciones históricas, presentes en la narrativa o en el cuerpo. Ningún pacto de conciliación apaciguadora contiene el odio: es el carácter destructivo el que precisa ser estratégica y cuidadosamente convocado porque éste “no tiene nada de duradero –ni la desgracia— pero por eso mismo ve caminos por todas partes, incluso cuando otros topan con muros y montañas. Sin embargo, como ve por todas partes un camino, tiene que estar siempre eliminando cosas del camino”.
Abrir camino significa ahora abrirse a la profunda y real autocrítica en relación a los errores acumulados en cualquier linaje al que nos asociemos. Lo que no significa, de ninguna manera, dejar de beber de las aguas ricas que cada uno puede ofrecernos. Entender lo que está ocurriendo y darle forma en realidad nos impone que rehabilitemos nuestras antiguas tecnologías.
Conozco personas pobres que votaron a Bolsonaro (no muchas, pero las conozco) y conozco personas pobres que votaron a Haddad, como también conozco personas que no votaron a nadie. Entre todos estos hay trabajadores que votarían a Lula, hay gente de las favelas cansados de tanta violencia, sufriendo hace tiempo como bestias de carga enlatadas en los transportes entre un salario miserable y una insalubre casa de alquiler.
Es necesario reponer el cuerpo en la política; son nuestros cuerpos los que se están expandiendo por las calles de las favelas y periferias hace más de cien años. Pero también son ellos los que nos pueden informar sobre las personas que votaron por el horror por no conseguir ver nada más allá de las elecciones como posibilidad de expresar su odio y no porque sea torpes.
El pueblo no es fascista, el pueblo no es revolucionario, el pueblo no es torpe ni héroe; somos la mezcla de todas las contradicciones y estigmas de esta sociedad en colapso y tenemos cada vez menos herramientas para rebelarnos, puesto que incluso las organizaciones que creamos a lo largo de años se han convertido en parte del orden.
Yo, que también estudié en las peores escuelas públicas, de las favelas más apartadas durante los violentos años de la década de los 90, pude acoger mi odio (activándolo como fuerza creativa) porque accedí a los restos de una distribución que el activismo no institucional todavía hacía. Me conecté con herramientas y con nuestra historia. Reproducir la caricatura electoral que bloquea la autocrítica nos aparta de la contradicción. Es sólo sobre una clase que recayó el peso del colapso y de las sucesivas crisis del capital, y ella posee una manera de ser, en este tiempo y en este lugar, con todo lo que esto significa en cuanto a colonización, raza, género y tantas diferencias, en carne y hueso.
La polarización generada por la crisis económica y su “agenda de recuperación” del capital va a producir más odio. Es necesario convocar su carácter destructivo, estratégica y cuidadosamente, imbuidos en una autocrítica radical sobre cómo nos hemos puesto en la acción aquellos y aquellas que pensamos en una vida más allá del capital.
Traducción: Carmen Figueiras.
Militante de las luchas por el territorio en las periferias de Brasil, y sobre todo, São Paulo. Escribe, canta, toca, baila y habla más de lo que debería. Comunista libertaria, feminista afro-indígena y favelada.
Militante das lutas do território nas periferias do Brasil e mais que tudo em São Paulo. Escreve, canta, toca, dança e fala mais do que deveria. Comunista libertária, feminista afro-indígena e favelada.
Notas
1. | ↑ | Os dados e o gráfico tem como Fonte o TSE/ *Não houve segundo turno em 1994 e 1998 |
2, 7. | ↑ | uma tática de defesa/enfrentamento utilizada por manifestantes em várias partes do mundo e que chegou com mais força ao Brasil em 2013 https://www.google.com.br/amp/s/brasil.elpais.com/brasil/2016/09/12/opinion/1473693538_681813.amp.html |
3, 8. | ↑ | O processo legal que impediu a presidenta Dilma Roussef de seguir governando em 2015 |
4. | ↑ | Mobilizações de jovens de periferia que marcavam encontros por internet em shopping centers e foram duramente reprimidos pela polícia e pelas associações comerciais https://www.google.com.br/amp/s/m.brasilescola.uol.com.br//amp/historiab/rolezinhos-discriminacao-social.htm |
5, 10. | ↑ | Walter Benjamin foi um ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu alemão. Associado à Escola de Frankfurt, ao marxismo e à Teoria Crítica |
6. | ↑ | BENJAMIN, Walter. Imagens do Pensamento. In.: Obras escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1995. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho; José Carlos Martins Barbosa. pp. 235-237. |
9. | ↑ | Mobilizações de jovens de periferia que marcavam encontros por internet em shopping centers e foram duramente reprimidos pela polícia e pelas associações comerciais https://www.google.com.br/amp/s/m.brasilescola.uol.com.br//amp/historiab/rolezinhos-discriminacao-social.htm |