TRAVESSIA – Sonia Bischain

Ficar não mais é possível, procuro um lugar para sonhar.
Sonho mundos sem cercas, sem bandeiras.
Partida, travessia: sol escaldante, chuva, vento de inverno.
No corpo, farrapos. Nos pés, lesões da longa caminhada.
Caminho sem olhar para trás.
Tento esquecer a hora trágica dos que sucumbiram,
dos que não chegarão a lugar algum.
Tudo ficou no passado, a vida me cabe nas mãos.
Levo apenas memórias, ou o que delas restou: feridas na alma.
Travessia, estado de espera.
Quisera eu ser água, vento, luzes, transpondo fronteiras.
Sou um frágil vaso, vazio. Sou incerta morada.
Minh’alma se desprende de mim, grita e chora,
segue o vento, e nada de novo.
Espero, contemplo, e nada. De novo!
Quem ousei chamar de irmão guarda silêncios!
Então, deixarei de ser vento, serei somente espera.
A cada alvorada, sinto esgueirar-se
a magia da esperança, me furtando as forças.
Prostrado espero, me perco.
Não sei mais o que sou, sou sombra, sou gente? Existo?
O mundo não me abraça.
Sou onze milhões de refugiados.
Sou sessenta e cinco milhões de deslocados.
Sou palestino expatriado em meu chão.
Sou haitiano, venezuelano, mexicano.
Sou angolano, congolês, sírio, somali.
Sou mulher, sou homem, sou idoso, sou jovem, sou criança.
Sou resistência, rompendo cercas, muros,
cruzando desertos, mares.
Estou na Palestina, na Jordânia, na Turquia, no Paquistão,
no Líbano, na África, na Ásia, nas Américas, vivendo tantas mortes.
Travessia… Serei apanhado, preso, abatido?
Serei humilhado, devolvido, faminto e aos farrapos,
a uma terra devastada?
A escuridão da noite, traiçoeira,
me sepultará nas profundezas do oceano?
Os filhos que me restam, sucumbirão comigo?
Serão enviados ao desconhecido?
Falarão outros idiomas, conhecerão outros costumes?
Travessia… Ficar não mais é possível.
A luta é maior que o medo. A dor, maior que a luta.
O mar, maior que a dor. A fome, maior que o mar.
Ah, imensidão de mar!
Que suas águas não me entreguem
em praia estrangeira, desfalecido, sem vida.
Travessia… Serei acolhido? Terei um novo lar?
Sobreviverei pela ajuda humanitária?
Viverei à espera, em campo de refugiados?
Retornarei? Contemplarei, um dia, minha terra restaurada?
Bato às portas do mundo civilizado: o mundo dos que têm.
Sou o outro lado: o mundo dos que carecem.
Sou estranho pesadelo.
Levantei dos escombros, das cidades destruídas,
das armas químicas, sou herança de muitas guerras.

Nota: Este poema, Travessia, foi apresentado por Sonia Bischain no Simpósio Internacional, com o tema: a espera/ à espera: figurações do contemporâneo (l’attente/en attente: figurations du contemporain), realizado na UNIVERSITÉ PARIS-SORBONNE, em outubro de 2017, organizado pelos Prof. Dr. Leonardo Tonus e Prof. Dr. Ricardo Barberena.

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